UMBERTO ECO "A cerca da Escolástica"
"Há
uma quaestio quodlibetalis de São Tomás que se pergunta
utrum Deus possit virginem reparare? - isto é, se Deus pode
fazer com que uma mulher que perdeu a virgindade possa ser reintegrada
em sua condição ordinária. A resposta de Tomáz
é taxativa. Ele diferencia a integridade da mente e do corpo, e
as relações temporais. A perda da virgindade é um
fato que como conseqüência causou uma afecção
espiritual e uma afecção física. No que diz respeito
à afecção espiritual, Deus pode perdoar e assim restaurar
a virgem ao seu estado de graça. No que concerne à afecção
física, Deus pode devolver à virgem a própria integridade
corporal, através de um milagre, ou, como hoje, da medicina estética/plástica
reparadora.
A pluralidade dos mundos não é uma idéia absurda
em princípio, mas nem Ockham consegue aceitar a idéia de
que a partir do momento em que um dado foi jogado Deus possa fazer com
que ele não tenha sido jogado." "Deus não joga dados com o Universo" (Albert Einstein) grifo meu. "A Escolástica tem uma noção linear do tempo. Pensar no tempo de maneira linear significa crer na linearidade da relação causal. Se A causa B, porque precede B no tempo, B não poderá causar A. É um princípio refinadamente "latino": o cordeiro de Fedro, e Fedro com ele, não se escandaliza pelo fato de que o lobo o coma (está na ordem das coisas), mas pelo fato de que o lobo quer fundar seu direito não na força, mas no reviramento dos processos causais; o rio não pode correr do vale para a montanha. Se superius stabat lupus, a água do lobo será causa da água do cordeiro, e não vice-versa. Este princípio é o mesmo que ordena a lógica interna da sintaxe latina. A linearidade irreversível do tempo, que é linearidade cosmológica, torna-se sistema de subordinações lógicas no consecutio temporum. Vimos que desde a época de Agostinho a cultura latina colhe, de todo pensamento bíblico, uma forma que foi latinizada nestes termos: Deus constituiu o mundo segundo numerus, pondus et mesura. De todos os conceitos matemáticos gregos, a idade Média aceita como princípio metafísico fundamental, através da releitura musicológica de Pitágoras, o da proportio. Mas a proporção deve ser sempre conforme a claritas e a integritas. Uma coisa é aquela que é e não pode ser uma outra coisa, e esta individualidade, que se baseia na definição da forma universal realizada em uma matéria signata quantitate, deve aparecer de modo claro: a legalidade daquela forma universal (que não é de uma outra). Só assim pode-se compreender não só que aquela coisa é, mas também que é uma, que é verdadeira e que é bela. Princípio de identidade, de não-contradição e do terceiro excluído : eis a lição que a Escolástica toma do pensamento grego. Mas a Grécia não só ofereceu o modelo de princípio de identidade e do terceiro excluído. A Grécia elaborou também o conceito de metamorfose contínua, simbolizada por Hermes . Hérmes é volátil, ambíguo, pai de todas as artes, mas deus dos ladrões, iuvenes et senex ao mesmo tempo. E herméticas serão as metafísicas da transmutação e da alquimia, e o princípio fundamental do Corpus hermeticum - cuja descoberta renacentista sanciona o fim do pensamento escolástico e o nascimento do novo neoplatonismo - é o princípio da semelhança e da simpatia universal. A Escolástica é resvalada por essa sugestão através do único texto hermético traduzido em latim - o Asclepius, mas procura esconder e remover a tentação da metamorfose contínua. A idade Média conhecerá o neoplatonismo através da versão cristianizada do Corpus dionysianum, e o problema do Pseudo Dionísio é que, como o Uno divino e icognoscível e anterior a esta determinação, é necessário, todavia atribuir-lhe nome (ou seja, é preciso falar de Deus, mesmo se Deus escapa a qualquer palavra nossa sobre ele). Vem, daí, seguramente, tudo o que se diz a respeito de Deus hoje em dia pelas religiões interessadas em alcançar o paraíso terreal - Deus é Fiel, Deus é amor, Deus é pai, é forte, é o BC etc...De Deus ou se diz tudo ou se diz nada. grifo meu. O
neoplatonismo cristão do Areopagita é um neoplatonismo "fraco"
- diferente do renascentista que, como veremos, será "forte".
O neoplatonismo do Areopagita embora reconhecendo a complexidade cósmica,
não pensa absolutamente que o Uno, que está em sua origem,
seja o lugar contraditório de todas as determinações
possíveis. Antes, sendo origem e a garantia da própria racionalidade
do cosmo, o Uno se reconhece sem ambigüidade. Quem o conhece de maneira
confusa e contradiória somos nós, que por causa da inadequação
de nossa linguagem não sabemos como nomeá-lo. Tentamos chamá-lo
de unidade, verdade, beleza, mas sabemos que estes são termos inadequados.
Dionísio dirá que usamos alguns termos para falar de Deus, mas em sentido hipersubstancial. Isto é, eles significam muito mais, ou muito menos, o que dá no mesmo, do que significam normalmente. Significam, portanto, sempre, qualquer outra coisa, por isso é oportuno chamar a Deus de monstro, urso, pantera, porque, dessa maneira, perceberemos que não estamos realmente dizendo a verdade sobre ele, e saberemos que só estamos falando simbolicamente. É fácil entrever o risco desta situação: todo aspecto do universo, mesmo o mais impensavelmente desproporcionado, serve para falar de Deus. Como ler o livro do mundo se nele tudo pode significar tudo? A atividade fabulatória da linguagem mística, com suas metáforas incontroladas, poderia tomar a iniciativa. Mas o platonismo medieval não admite o que o neoplatonismo grego admitia, ou seja, que Deus emana-se, que o Universo é, por assim dizer, um ectoplasma do Uno, e que até seus ínfimos graus é feito da mesma massa de Deus. A filosofia cristã deve salvar a absoluta transcendência de Deus, e assim lentamente - e é o trabalho que farão os teólogos posteriores no Corpus, até Santo Tomás - transformar a idéia neoplatônica da emanação na idéia cristã da participação. O Uno divino está infinitamente distante de nós, não somos feitos de sua mesma massa, somos criados por ele, mas existe uma distância, uma interrupção entre ele e nós, não é um fundente, um magma contínuo. É possível entender assim, como, nesta perspectiva, mesmo adimitindo-se que o mundo seja uma selva de formas significantes e que todas possam falar de modo diferente de Deus, procure-se limitar a polissemia do cosmo. É preciso chegar a afirmar de modo unívoco a univocidade e não contraditoriedade que Deus em si é. Trata-se de transformar um pulular de alusões, de imprecisas relações de semelhança, em cadeias de causa e efeito sobre as quais se possa raciocinar de modo unívoco. O princípio tomista da analogia não se baseia em semelhanças inaferráveis e vagas, mas em um critério metodológico que permite inferir, segundo regras o mais possível unívocas, pelos efeitos a natureza da causa. Para que este discurso seja possível, é necessário acreditar firmemente no princípio de identidade e sustentar que tertium non datur.. .Podem existir opiniões contraditórias, mas o objetivo da filosofia é alcançar uma conclusão sem ambiguidade"... Humberto Eco in Arte e Bellezza nell'estetica medievale.Cap. XII - §12.2
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